O ser enquanto essência de toda ontologia é posto em questão seja pelo dizer, pelo funcionamento fálico, ou seja, pela topologia[1]. O ser, definido em seus limites, se inscreve em um universo, em uma topologia esférica, em um mundo de superfícies biláteras. A topologia demonstra que a partir do circuito esférico pode se construir a topologia asférica subjacente. O ser (primeira fórmula/topologia esférica) é lançado em uma topologia mais ampla (as quatro fórmulas/topologia asférica). O matema é distinto da linguagem matemática. A matemática é a ciência sem consciência. $ é semblante que se sustenta pela verdade do objeto a.
No nível topológico, a banda de Möbius asférica ($) mantém sua estabilidade graças ao círculo suplementar esférico (objeto a). Pode-se cernir o fantasma ($ ◊ a) segundo as quatro modalidades que correspondem aos quatro discursos e às quatro fórmulas da sexuação. A transmissão que supõe a exclusão da significação será escutada pela diferença, na passagem lógica de um discurso ao outro, de uma fórmula a uma outra, de uma forma de fantasma a um outro. O matema se fundamenta somente em um discurso, que é oposto radicalmente à experiência do discurso do analista. Lacan substitui a transmissão do matema pelo giro dos discursos implicados no discurso do analista: a configuração do discurso psicanalítico se fundamenta por um lado na impotência do significante em fazer relação de significação (S2 é inacessível a partir de S1) e por outro lado em presença do objeto a e de $.
O analista se autoriza a ser lançado na referência, na Bedeutung, na função fálica que articula os quatro discursos, na topologia que articula o matema como passagem de uma topologia esférica a uma topologia asférica. Não é a metáfora, que é da ordem da significação, que tem efeito no trabalho em análise, mas o ab-sens que é próprio do discurso matemático. A função do matema é dar acesso ao campo do ab-sens, que épróprio da linguagem matemática e da linguagem do inconsciente. O ab-sens se encontra no coração da análise: o inconsciente é a dinâmica do ab-sens presente no interior de um discurso que o faz bascular, abrir e fechar. O discurso do analista tem função: abrir um intervalo pela escansão, equivocar, suspender, fazer corte nas superfícies biláteras, torção, fazer corte na linha mediana do cross-cap, produzir resto pelo corte, procurar desfazer a relação de significação S1//S2, já que toda significação remete a uma outra significação.
A experiência de cada um dos três discursos não-analíticos visa escorar cada discurso. A experiência do discurso analítico visa labilisar, desestabilizar cada discurso para estimular o giro dos discursos.
A experiência de análise é “que não importa o que não pode ser dito” se a regra fundamental é de dizer não importa o que, a psicanálise não visa o que é dito (posto em palavras), mas o reviramento do dito em outro dito, a diferença diacrônica própria ao significante que vai além da dit-menção do dito e conduz ao dizer.
“Que se diga resta esquecido sob aquilo que se diz no que se ouve…” O dizer é a ex-sistência que se inscreve em falso contra a universalidade: “tudo não se pode dizer”, porque um dizer se excetua necessariamente. O dizer não é o sujeito, não é nem o sujeito fenomenológico da enunciação, como suposto autor da palavra, nem o sujeito do significante (um sujeito é “efeito do dito”: aquilo que representa um significante para um outro significante).
Topologicamente, “nas asferas o corte fechado é o dito.” O dito se inscreve em uma relação de significação S1-S2 que volta ao seu ponto de partida. Na asfera (ou no cross-cap) se distinguem duas espécies de cortes fechados, aquelas que dividem a asfera em duas partes e aquelas “que não fazem da asfera duas partes”.
Para além do efeito de sujeito (a banda de Moebius), o corte fechado cerne uma porção da esfera bilátera: o resto do cross-cap. Este resto se apresenta como conceito. O conceito não define nenhuma coisa real, mas somente “o ser” como essência da coisa possível. “O ser” em geral se distribui em múltiplas essências (o mundo, o homem, Deus, mas também a pedra filosofal, o macaco e assim por diante.) e divide o universo em múltiplas regiões (cosmologia, psicologia, teologia) referidas ao ser em geral e ao todo da essência (da ontologia).
O dizer em análise se especifica a partir do dizer da demanda. O estatuto lógico da demanda é da ordem do modal e a gramática o certifica. A demanda modal se apresenta de fora da análise e não especifica o dizer em análise.
Um outro dizer é privilegiado em análise, a interpretação. A demanda é modal, a interpretação não é modal: é apofântica. O termo é adotado por Aristóteles para caracterizar os enunciados que podem ser ditos sejam estes verdadeiros ou falsos. O dizer específico em análise não funciona como verificação de verdade, nem é simplesmente modal. Verdade ou falso, demanda oral ou não, são dois dizeres que correspondem a uma lógica esférica universalisante. A interpretação é particular, não se inscreve na universalidade do conceito ou da demanda, supõe a excepcionalidade.
A associação livre implica que os ditos são não todos que não se reduzem à demanda. O não-todo é uma função lógica sobre o qual incide a interpretação psicanalítica que não coincide com uma explicação dos ditos ou uma análise de uma demanda.
A topologia em sua função de matema ou de transmissão demonstra que é sob o toro que se inscreve a demanda e sob a esfera que se inscreve o conceito e a essência do ser. No entanto, há a asfera que condiciona tanto a demanda quanto o conceito e o ser.
Para que a interpretação possa se produzir, é preciso que se transforme a banda de Moebius em cross-cap, quando a lógica modal da demanda se fecha em cross-cap para, sob corte, se transformar, se subverter topologicamente, de modo a revelar a causa do desejo, o objeto a.
Se considerarmos as duas partes do cross-cap já cortado, há o objeto a causa do desejo que corresponde a uma topologia esférica e se projeta sobre o outro heterogêneo, sobre uma banda de Möbius, considerada como o modal da demanda. O discurso analítico “toca o real ao reencontrá-lo como impossível”. A interpretação analítica supõe que o real do objeto a seja articulado a partir do impossível e como heterogêneo à demanda. O não-todo da demanda abre lugar ao objeto a. O não-todo presente na demanda não é redutível à demanda: é o Héteros das duas partes do cross-cap: o dizer da demanda e o objeto do desejo.
A lógica do corte transforma o esférico em asférico, revira um discurso em um outro, salta de uma fórmula a uma outra. O corte moebiano revela o impossível e o real da passagem do esférico ao asférico se segue. O Real é excluído: que se diga resta esquecido, a ausência de relação sexual é velada, a asfera é escamoteada. A ausência de relação sexual procede da topologia asférica e de suas transformações.
O dizer de Cantor introduz a potência do contínuo além do infinito, enumerável em uma sequência de números, que vem a situar “o transfinito”. A sequência de números é uma representação esquematizada e reduzida da potência do contínuo, assim como a banda de Möbius se reduz a um corte no cross-cap. O corte faz deux- dois que precede a enumeração “d’eux – d’eles”, do enumerável ao infinito da demanda. O impossível toca o transfinito que representa uma ordenação de pontos do contínuo surgida a partir de um dizer sobre “o contínuo e o corte”. O discurso da análise matemática é idêntico ao discurso da análise freudiana. Do número infinito de demandas, que restam não contabilizáveis, passa-se ao desejo, ao impossível de contabilizar. O corte elucida a topologia asférica. Esta passagem da demanda ao desejo já estava presente na teoria lacaniana de 1960 que é a passagem do esquema R ao grafo do desejo e que é explicitada pela passagem do contabilizável ao transfinito ou pela passagem da esfera à asfera da topologia.
Lacan em L’étourdit [2] diz que a topologia não é uma substância pensante que estaria à disposição para constituir uma teoria que motivaria uma prática. A topologia do dizer ou do cross-cap é a prática de reviramentos de discursos. O discurso psicanalítico abre em cada discurso uma hiância que o faz revirar em si mesmo.
A prática analítica que é a topologia deve dar conta dos cortes de discurso que modificam a estrutura. Cada discurso se inscreve na estrutura dos discursos em geral, o discurso aloja a estrutura. Os cortes são operações que podem produzir uma subversão topológica.
A primeira operação faz passagem de uma topologia esférica a uma topologia asférica, de um discurso centrado sobre o dito a um discurso centrado sobre o dizer, do discurso do saber ao discurso do analista. A segunda operação de subversão topológica tem um alcance mais amplo: demonstra a asfericidade da banda de Möbius pela extração de um fragmento esférico, o disco suplementar, o objeto a. Não se trata de passar de um discurso a um outro de passar da esfera à asfera, mas de demonstrar a asfericidade que consiste em que a asfericidade esteja sempre presente. A modalidade do dizer não pode ser descartada nem esquecida. Nesse sentido o discurso psicanalítico asférico está presente em cada um dos outros discursos.
Reduzir a função fálica a uma pulsão vital e divulgar “modos de bem viver” permite a alguns sujeitos elevar seu nível de vida e se valorizar, o que significa permanecer na topologia esférica. Adicionar secundariamente um discurso elaborado em torno de termos de “sentimento ou afeto” não modifica nada, mas institui a normalização do saber universitário, ajustando-o a uma determinada lógica, definida previamente como uma lógica do inconsciente. O inconsciente é força motriz do dizer ao passar de um discurso a um outro. O inconsciente é um fato que se sustenta em um discurso que ele mesmo estabelece, o discurso psicanalítico.
14 de novembro de 2022, em jornada anual da Escola Letra Freudiana de 2022.
Ivanisa Teitelroit Martins
[1] Guia topológico para “O aturdito“, um abuso imaginário e seu além (Chapuis, J. 2019, Editora Aller)
[2] L’étourdit (Lacan, J. Autres Écrits 1972, Éditions du Seuil