“O que é a clínica psicanalítica? A clínica é o real na medida em que é impossível de suportar” (Lacan)

O estudo de um paradoxo no ensino de Lacan e na transmissão da clínica psicanalítica

Estudo do impasse proposto por Lacan de um inconsciente real além do inconsciente transferencial como mais um paradoxo em seu ensino. Partiremos da leitura de que o inconsciente freudiano é um inconsciente que tem sentido e que se interpreta, ao passo que no ensino de Lacan há a introdução de um novo registro, o real, enodado ao simbólico e ao imaginário. Lacan retoma suas elaborações utilizando o nó borromeu que ano após ano se torna mais complexo. Seu ensino se move da tradução à transliteração na direção do limiar que em última instância se lê-letra, é só-letra.

Freud em sua clínica com as histéricas se aproximou da instância do real ao constituir a teoria do recalque. Porém ao longo dos anos se afastou da noção do real, do não-reconhecível, do mutismo e da morte e se concentrou na noção de castração. A teorização da castração passou então a recobrir a primeira formalização. A noção do real foi sendo recoberta  pelo simbólico até se apagar no texto, mas deixou vestígios e pegadas. Já o ensino de Lacan em movimento retroativo se voltou para os fundamentos freudianos. Enquanto Freud partiu do real para chegar à castração, Lacan pelo deciframento partiu da castração simbólica e atingiu um ponto de real, desvelando o recobrimento que se instalou pelo sistema simbólico. Lacan faz a Coisa freudiana falar através do atravessamento dos furos, sem os quais não é possível cernir a hiância do registro do real.

“O que é a clínica psicanalítica? […] A clínica é o real na medida em que é impossivel de suportar.” J. Lacan “Ouverture de la section clinique”, Ornicar/, n. 9. Paris, 1977.

Trata-se de encontrar a justa medida entre a clínica e o que nela se transmite. O método constitui essa medida. A referência clínica assume diferentes modos: a vinheta clínica, a extração de constantes a partir de vários tratamentos ou ainda o relato de caso de um tratamento em seu conjunto. Em Freud, apresentava-se como garantia a ligação entre método de tratamento, método de pesquisa e transmissão. A questão se dirige à transmissão de uma clínica psicanalítica: conta-se com o que se transmite – o fato clínico ou assim suposto – e com o meio de transmitir. Na trilha de Freud, Lacan encontrou uma alternativa para os impasses freudianos: em vez de publicar o caso dar ênfase ao estilo. A escrita proposta por Lacan contribui para desfazer a oposição filosófica entre teoria e prática. Lacan elevou o esquema freudiano à dignidade de um algoritmo, abrindo a via para uma clínica do não-todo.

Pretendo apreciar diferentes modos de relatos de fatos clínicos psicanalíticos, modulando sua apresentação e apreciação pelo paradoxo proposto por Lacan de que pode-se ler um inconsciente real além de um inconsciente transferencial.

O valor do inconsciente como signo, ou marca indicativa, ultrapassou em muito a importância de seu significado como propriedade. À falta de um expressão melhor e menos ambígua, daremos o nome de “o inconsciente” ao sistema que se revela por meio de um signo indicativo da inconsciência de cada um dos processos psíquicos que o compõem. Uma sugestão de Lacan é passar a designá-lo pelas letras Ubw abreviatura da palavra alemã Unbewusst. Este é o terceiro e mais importante significado que o termo “inconsciente” adquiriu na psicanálise. Freud, S., Alguns Comentários sobre o Conceito de Inconsciente na Psicanálise – 1912

Em seu texto de 1955, “A coisa freudiana”, Lacan desenvolve a ideia de que a coisa freudiana é o que não se pode falar, mas que se pode fazer falar. Por isto Lacan enuncia seu famosos aforismo “Moi, la vérité, je parle”. Em outras palavras, se o “eu falo” equivale à verdade, a coisa freudiana não pode ser inteiramente substituida pelo sentido que possa ter o retorno a Freud sem que se trate de uma substituição, porque a verdade não se pode dizer toda. Lacan sublinha em “Televisão”: o dizer “todo” é impossível porque “as palavras faltam”: o real como impossível de dizer se articula à verdade, à palavra e à Coisa. A negativa (Verneinung) como símbolo da negação é uma via  que permite a configuração de uma topologia de extimidade da Coisa (Das Ding) pela Bejahung e pela Austossung.

No momento do relatório de Roma, Lacan acentua o fato de que a identificação ao sintoma, dita sem mediação, não poderia proceder de uma extraterritorialidade à linguagem. Trata-se de interrogar a relação do sujeito com a linguagem para aí encontrar aquilo que, em certos casos, torna inoperante a mediação da relação imaginária produzida pela linguagem no ser falante.

Roma é o lugar onde se proclama o domínio, francamente adquirido sobre um poder. Em Roma estamos “no relatório”. Já em Viena houve um acontecimento. Ali Lacan se metamorfoseia em “freudiano” enunciando “a coisa freudiana” como sendo aquilo que só se poderia constituir no movimento de um retorno a Freud. Lacan se engaja na operação de um retorno a Freud a partir de um problema teórico que não cessará de trabalhar este retorno, que este retorno não cessará de trabalhar, que é o da articulação de Freud com S.I.R.. A Coisa será a última versão desse retorno, quando Lacan introduz uma outra definição do Eu na leitura de Freud. Uma das soluções possíveis ao alcance do retorno a Freud consiste em experimentar R.S.I., como aquilo que falta a Freud.

A recuperação da transmissão freudiana somente foi possível por conta de rupturas (Charcot, Breuer, Fliess), cisões e até mesmo dissoluções de Sociedades e de Escolas. A experiência da psicanálise tanto no campo do ensino quanto no campo da clínica não se reduziu a conflitos pessoais, pelo contrário, introduziu ou engendrou mudanças de discurso.

A princípio instaura-se uma questão sobre a prevalência entre sentido ou letra até mesmo dois modos de leitura, uma dentro do campo do sentido em que se aposta em uma renovação de sentido ou outra em que a leitura atua fora  do sentido sem deixar de o modificar.

No sentido da letra como “estrutura essencialmente localizada do significante”, o significante do Nome-do-Pai é, pois, devido à sua localização, um significante como tal, escrito.

Em Lição IX do Seminário A Identificação de 24 de janeiro de 1962: “A relação da letra com a linguagem não é algo que se deva considerar numa linha evolutiva. Não se parte de uma origem espessa, sensível, para daí destacar uma forma abstrata. Não há nada que se pareça a nada que possa ser concebido como paralelo ao processo dito do conceito, mesmo somente da generalização. Tem-se uma série de alternâncias onde o significante volta a bater na água, se posso dizer, do fluxo, com as pás de seu moinho, e sua roda volta a subir cada vez que alguma coisa brilha, para tornar a cair, enriquecer-se, complicar-se, sem que jamais possamos em momento algum compreender o que domina do ponto de partida concreto ou do equívoco.”

  1.      O ponto de partida é o signo, as pegadas e o caráter chinês, o choque da coluna de ar contra a língua e o palato na oclusiva gutural, que é tão figurativo quanto o traçado da marca do pé: operação da transcrição.
  2.      O apagamento da pegada realizado pelo que se chama “vocalização” ou “fonematização” ou uma homofonia potencial. Esse tempo é aquele em que o traçado do passo é lido como “passo” e apagado como pictograma do passo, impressão de uma pegada.
  3.      O traço que vem rodear o traço apagado confirma este apagamento. E ao tomar este traço apagado escreve-se o homófono do primeiro “pas”, que é na língua francesa o “pas” da negação. Logo, é no só-depois desse terceiro tempo que o apagamento, constitutivo do segundo, pode ser considerado como uma homofonia. Essa operação é a da transliteração do rébus da transferência onde o traço do “passo” (pas) vem escrever um “pas“ de negação/ apagamento do traço.

O sintoma se oferece no acesso à ordem simbólica através da transferência – a ser descoberto como produção do inconsciente, referido ao significante no seu enlace a um significado que terá que ser denunciado e negado para se produzir uma significação na relação analítica  Através da transferência na construção da demanda em análise, abre-se uma possibilidade de desconstrução de significados e de novas significações, em uma permanente plasticidade que se contrapõe à compulsão à repetição.

O sintoma se encontra entre o desejo e o recalque e a constituição da teoria do recalque em Freud surge a partir da ruptura entre ele e Fliess sobre a bissexualidade. Enquanto Fliess encontra evidências anatômicas para adotar a bilateralidade como índice da diferença sexual, Freud penetra no campo dos pares opostos de significantes e do conflito psíquico como constitutivo do sujeito.

Por trás do debate em torno da bissexualidade entre Freud e Fliess, a teoria do recalque estava em vias de se constituir. O momento definitivo de ruptura com Fliess é provocado a partir de um sonho de Freud em que uma criança, ao invés de dizer até logo, diz auf Geseres auf ungeseres, um par significante. Freud associa esse par a outras oposições significantes e conclui que a criança opõe palavras para manter o equilíbrio, o que teria uma função própria no campo da economia psíquica e que a oposição entre significantes não é determinante para a etiologia da histeria.

Freud passa então a adotar a teoria do recalque. Se o feminino como tal é lacuna inominável, mutismo, resistência ao próprio discurso, esta lacuna somente pode ser demarcada por um viés, o do recalque, que vai produzir uma representação, um traço, lá onde literalmente não há nada, nem representação, nem traço. Ao fazer isso, o recalque propõe à análise um material, uma alguma coisa mais que coisa alguma.

O real está lá “só depois”, na medida em que, em nível de inconsciente, a repetição significante produz literalmente o real em sua função de causa. O efeito do recalque, passando pela repetição e pelo retorno do recalcado, consiste em sexualizar aquilo que primitivamente não estava sexualizado pelo sujeito. O recalque, em suma, tem por função fazer do real uma realidade sexual. Se há sexualização, há, por esse fato mesmo, determinação de um não-sexualizado. Tal é o segredo do mecanismo de repulsa na histeria. O inconsciente opera com o real, não apenas trata o real, mas o produz, o determina no interior do processo de recalque. Esse real não é simplesmente exterior à repetição significante, mas está capturado por ela, mesmo que não esteja aí representado enquanto tal, ele está presente e se traduz por efeitos de angústia.

O sujeito é capturado por uma experiência real sem significantes que permitam responder para constituir uma transformação de uma cena passiva em uma cena em que ele participe ativamente. Sem o significante que lhe abre a possibilidade de ação, o sujeito permanece confrontado com uma lacuna que aponta para o recalque. O recalque por constituição primária causaria o significante, o par de significantes (S1-S2) que viriam contornar a experiência do real nomeada por Freud de Vorstellungrepräsentanz (representante-representativo). Nesse limiar o significante cumpre sua função de corte, de delimitação de um bordo entre o real e o simbólico.

Freud ao longo dos anos abandona a noção do real, do não-reconhecível, do mutismo e da morte pela noção de castração. A teoria da castração passa então a recobrir a primeira formalização. Para Serge André, em O que quer uma mulher (1996/1998), o real vai sendo recoberto pelo simbólico até desaparecer. Já o ensino de Lacan faz emergir a instância do real pelo sistema simbólico. Freud parte do real para chegar à castração e faz da castração uma tela para o real. Em Lacan, pelo contrário, o deciframento parte da castração simbólica e atinge um ponto de real, e o sistema simbólico deixa de ser um recobrimento para atravessar os furos através dos quais se manifesta a hiância do real. Ao fazer um movimento retroativo aos textos de Freud encontramos os vestígios de uma instância do real.

É pela via do recalque que se opera a sexualização do corpo, determinando retroativamente o lugar do trauma, o furo pelo qual se presentifica um real dessexualizado, o processo de recalque institui uma fronteira, um limiar. E o seu fracasso deixa aberta uma hiância por onde se manifesta o trauma ou o troumatisme. Na medida em que nem tudo se torna representação, nem tudo é absorvido pelo significante, resta um real não simbolizado em torno do qual vem se construir um sintoma. O discurso da histérica consegue atingir uma vorstellungrepräsentanz que aponta para um mais-além fora do significante.

A denegação é uma “atitude concreta” na origem do símbolo explícito da negação, símbolo que possibilita a ação do inconsciente, ao mesmo tempo em que é mantido o recalque. O conteúdo recalcado de uma ideia ou pensamento pode penetrar na consciência, desde que seja negado (verneinen). Isso porque a negativa (Verneinung) é uma maneira de tomar conhecimento do recalcado em um plano somente intelectual. O que está em jogo, é só uma suspensão do recalque e ainda não sua plena aceitação (Annahme). O essencial do recalque permanece intocado. Por meio do símbolo da negativa (Verneinungssymbol) o pensar liberta-se das restrições do recalque e acrescenta conteúdos dos quais não podia prescindir. O não-real, o que é somente imaginado (das Vorgestelle) é próprio da realidade psíquica.

A negação é uma via  que permite a configuração de uma topologia de extimidade da Coisa (Das Ding) pela Bejahung e Austossung que compõem os antecedentes das operações de defesa na neurose e na psicose. A negação como operação permite ao sujeito tirar  consequências do fato de que foram perdidos os objetos de satisfação ou da perda instaurada por Das Ding na entrada do sujeito na linguagem. Não se trata, portanto, de um julgamento ou controle da realidade psíquica pela material. A realidade material é a própria prova do inconsciente, porque é a operação que revela a ausência da experiência de satisfação e a necessidade de sua presença no campo da representação.

O não que não há no inconsciente do sujeito aparecerá na sua fala. Freud vê nisso o “valor de índice” do momento em que o desejo inconsciente irrompe no discurso tanto na análise como fora dela. Com o não o sujeito diz o que não quer saber. E sua relação com a realidade psíquica se constrói nesse paradoxo.

Há diferentes modos de operação em torno da negação para formação do símbolo da negação. Esses modos têm como motor a apropriação pelo eu de representações psíquicas por um lado e a expulsão de outras pelo outro, na esfera do princípio do prazer, regido pela libido. Aparentemente, o que distingue a neurose da psicose, do ponto de vista da constituição, é o comparecimento ou não da libido. A presença ou não da libido produzirá a fala no campo da linguagem. O ser da linguagem, enquanto eu, ao ser atravessado pelo simbólico tende a se dividir, e a isso o eu resiste, pela produção de um imaginário fértil na evitação da cisão (cisão do eu em Freud).

Em comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung, destaca-se a discussão da criação do símbolo da negação que, segundo ele, permitiu um primeiro grau de independência frente ao recalque e suas consequências e contra a coação do princípio do prazer. Resta saber como a operação de negação e seus modos de ação sobre o recalcado influenciam na emergência do sujeito do inconsciente.

Levando-se em conta que o significante recalcado pode ser novamente retomado e reutilizado, devido uma espécie de suspensão (aufhebung) que o libera momentaneamente do domínio das pulsões, é possível que este processo possibilite uma margem do pensamento, um aparecimento do ser sob a forma do não ser, o que suponho seja o próprio sujeito do inconsciente, aquele que é e não é. A denegação é uma “atitude concreta” na origem do símbolo explícito da negação, símbolo que possibilita a ação do inconsciente, ao mesmo tempo em que é mantido o recalque. O conteúdo recalcado de uma ideia ou pensamento pode penetrar na consciência, desde que seja negado (verneinen). Isso porque a negativa (Verneinung) é uma maneira de tomar conhecimento do recalcado em um plano somente intelectual. O que está em jogo, é só uma suspensão do recalque e ainda não sua plena aceitação (Annahme). O essencial do recalque permanece intocado. Por meio do símbolo da negativa (Verneinungssymbol) o pensar liberta-se das restrições do recalque e acrescenta conteúdos dos quais não podia prescindir. O não-real, o que é somente imaginado (das Vorgestelle), o subjetivo, está presente somente no dentro, enquanto o real estará também presente no fora.

O não que não há no inconsciente do sujeito aparecerá na sua fala. Freud vê nisso o “valor de índice” do momento em que o desejo inconsciente irrompe no discurso tanto na análise como fora dela. Com o não o sujeito diz o que não quer saber. E sua relação com a realidade psíquica se constrói nesse paradoxo.

O inconsciente freudiano  é um inconsciente que tem sentido e que se interpreta, ao passo que Lacan introduziu um novo registro, além dos registros do simbólico e do imaginário, o real, em que sentido e interpretação se apagam. Lacan faz impasse ao  apresentar a proposição de um inconsciente real para ir além do inconsciente tranferencial, o que requer uma apreciação da natureza de mais um paradoxo no ensino de Lacan.

Quando o inconsciente-interpreta não faz mais do que repetir  as mesmas fricções, porém quando analisar-se equivale a fazer a experiência do vazamento, do esvaziamento do sentido, a experiência analítica se orienta na direção da “quête de outra coisa. Não é mais o trabalho de decifração do inconsciente freudiano nem do “nosso”, nem do inconsciente-sujeito, nem do inconsciente-verdade.

No inconsciente freudiano reconstroi-se uma história. E no movimento contrário no fim da redução do inconsciente e do symptôme, não se encontra uma história mas fragmentos de escrita e traços de real.

Frequentemente Lacan associa furo e falta como se eles fossem sinônimos; por exemplo, quando ele define as três faltas de objeto, que são a castração, a frustração e a privação ou quando Lacan aborda o furo no Outro que a falta do significante do nome-do-pai engendra.

Falta e furo não são dois termos que se substituem um pelo outro. A falta refere-se ao sujeito enquanto o furo ao objeto. A questão se refere à falta de objeto para um sujeito na relação com o Outro. A falta de um engendra o um na teoria dos conjuntos. O furo é uma forma de objetivar a falta em seu lugar. É isso do que se ocupa a topologia. Quanto mais Lacan integra a topologia ao seu ensino, mais Lacan faz referência ao furo. O nó borromeano com seu  “furo inviolável”  (nenhum dos aneis passa pelo furo do outro), é uma topologia do furo, a partir da qual Lacan distingue os furos verdadeiros dos furos falsos. (Milner, Jean-Claude, a Obra Clara – Lacan, A Ciência, a filosofia, Zahar, 1996).

Podemos até dizer que o nó borromeano é uma escrita de escrita, pois dá conta do funcionamento imaginário, simbólico e real da letra. Jean-Claude Milner escreve: “O significante deriva apenas da instância S, mas a letra vincula R, S e I, que são mutuamente heterogêneos. A letra é exemplarmente “a”, no enlaçamento borromeano de RSI.

Na escrita borromeana a distinção teoria/prática é superada, uma vez que há uma prática dessa escrita-teoria, prática que pode ter efeitos terapêuticos.

O real é Um, não é um todo, como sublinha Lacan no Seminário “RSI”: “o real não é todo”. Pela regra o real se apresenta ao sujeito vestido de semblants. Assim a relação sexual que não existe nos faz “ tomar uma veste por uma lanterna ”, ou tomar um semblant por qualquer coisa e cernir o real em uma metáfora. Isto não é ainda o real de Lacan. O real é um “fogo frio”, diria ele. Não é o fogo da paixão, nem o fogo que ilumina nem aquele que queima, é “o zero absoluto”. Este real  se orienta por este absoluto, não tem sentido: “a orientação do real (…) forclui o sentido”, ela conduz ao fora-de-sentido.

A verdade é no primeiro ensino de Lacan algo incontornável: o reencontro com o horror da castração. O que resta irredutível ao simbólico é o real que tem a última palavra da verdade, aquela da castração. Neste periodo a orientação da prática analítica é a da interpretação. Em o Aturdito (L’étourdit) a verdade encontra seu ponto de escora, ela somente é meio-dita. Lá onde o real era a parte inassimilável pelo significante, há a separação entre os ditos e o dizer. O dizer ex-siste ao dito, e portanto “não há o dito sem o dizer”. Os ditos cernem o dizer como real. É um impossível lógico. É “o ab-sens” que designa o sexual.

Com o sinthome, na última clínica que Lacan nos transmite, ele não considera que é o sexual que é traumático mas lalíngua. Lacan introduz o ler que implica em escrita: contrariamente ao dizer que se desdobra em direção ao sentido, a escrita se desdobra  mais na direção do fora-de-sentido. A análise não se reduz ao ato de dizer. Não há uma última palavra em uma análise. A alternativa ao dizer é o ler.

A análise parte do discurso que restaura os semblants em direção a “um discurso que não seja semblant” para se dar conta daquilo que se encontra além dos semblants e que chamamos de real que é “um discurso que seria do real”: um discurso que se encontra no limite do discurso que pudesse dizer o real. Deste modo, o que mais se aproxima do real é a linguagem reduzida à letra.

1. Relato da constituição do sintoma como fato clínico

O sintoma. O braço como sintoma à mão

A princípio, ele parecia não dar importância ao braço. Como não conseguia se deitar no divã, pois precisava olhar para mim, ficava sentado, com a mão defeituosa abandonada na direção de minha poltrona. Seu dedo parecia formar um gatilho, como uma defesa. Uma vez procurou mostrar o braço esquerdo ao falar, aquele masculino, cruzando-o no peito. Era um braço bem diferente, peludo e másculo, enquanto o direito era fino e de pelos ralos. Queixava-se de que não conseguia fazer regime, que havia formado uma ‘barriguinha’ e que seu corpo tomava a forma de uma pera. Depois de algum tempo em análise fez regime e musculação para que os braços tivessem musculatura semelhante. Já mais adiante, quando falava que as pessoas não eram más, mas que as circunstâncias as levavam a ferir os outros, ao se indagado sobre essa maldade que podia haver no avô materno e no tio materno acaba tendo que admitir que há maus. Admite que possa ser mau. Nesse momento junta as duas mãos, as entrelaça e elas ficam iguais.

2. Relato de homofonia na experiência clínica

Odile (Oh dis-le) por Jean Allouch em Letra a Letra

Ao fim de uma sessão quando lhe digo “Allez_ (vá), ela lê Ah, elle est (ah, ela é) como uma observação que eu teria feito a propósito da pessoa de quem ela acabava de me falar. E, a partir daí, me interroga” por que, então, eu lhe teria dito que ela é? Em outra ocasião, decifra meu “excelente”como um “oh, como isso é lento!”.

Referências Bibliográficas:

Allouch, J. – Letra a Letra, transcrever, traduzir, transliterar. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, Editora Campo Matêmico, 1994.

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________– (1915) O Inconsciente  em Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente, Volume 2. Coordenação geral da tradução: Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.

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                            Rio de Janeiro, 24 de setembro de 2014

                                      Ivanisa M Teitelroit de S Martins