Segundo Freud e Lacan, o sujeito não pode se reconhecer naquilo que é, mas naquilo que tem.
Um corpo e “ n’en a qui un” “ nan-na Kun.
Um nome próprio.
Uma “historíola” (variação de historieta).
Um sinthome que contorna o furo do inconsciente pelo que isso aflige e que nunca termina. Um gozo específico do corpo doravante falante, parasitado pela “alíngua”, que se enraíza profundamente nele, animando seu gozo ao mesmo tempo que o desnaturaliza.
Dizer que há um fim de análise causa equívoco. Não se quer dizer com isso que haja o desaparecimento da psicanálise, o que muitos psicanalistas pretendem, sem o saber, alcançar. Outros psicanalistas, sem o saber, se dispõem até mesmo a desconhecer a própria psicanálise. Freud, desde a invenção da psicanálise, invoca a questão de saber o que dizer de um fim de análise, de seu termo lógico.
Para desenvolver, mesmo que parcialmente, esta questão trataremos da invenção do objeto a em Lacan e o enodaremos à reflexão de 2015 de Patrick Valas sobre o fim de análise. Valas sugere que haveria um incômodo não contingente da sexualidade humana que em todo e qualquer fim de análise deixa sequelas irredutíveis resultantes do complexo de castração, no inconsciente, quer seja em um homem ou em uma mulher. Para sustentar essa reflexão, Valas faz uma digressão sobre algumas das considerações de Freud em Análise terminável (terminada) e Análise interminável como a de que após algum tempo do término de uma cura pode haver ou não uma alteração do recalque originário, um pequeno movimento da Urverdrängt, aquilo que do inconsciente nunca será interpretado. Este ponto passa desapercebido, apesar de ser grande, enorme mesmo. Cabe perguntar se haveria uma modificação da estrutura linguageira em que o inconsciente e o symptôme enodados seriam os efeitos.
Lacan apresenta no momento certo a Coisa Freudiana falante, o das Ding, a “Crachose”, a “Cracoisa”, ressaltando a inadequação das palavras às coisas. As palavras se moldam às coisas para partirem, racharem A Coisa. Dito de outro modo, o inconsciente e o real nos afligem mediados pelo significante. E este é um saber que é desarmônico, que está em desarmonia com o corpo, impossível de se saber. Volta-se então à questão de Freud sobre o fim lógico da cura.
Lacan se esforça em traduzir esses termos utilizando todos os recursos que lhe fornecem as lógicas, das clássicas à lógica “elástica” que consiste na topologia, que é o que há de mais avançado na lógica matemática (pois o inconsciente é enlaçado à lógica e não à gramática da qual dependem as pulsões). Lacan retoma as traduções do texto de Freud entre as mais conhecidas: Análise terminada e análise interminável, a análise finita e a análise infinita (finitude-infinitude), contínua e descontínua. Mas ele vai aqui introduzir de novo o todo, o não-todo, as relações entre o necessário, a contingência, a exceção, o impossível, o indemonstrável, o indecidível, os incalculáveis, o entre-dois etc., todas as possíveis formalizações da completude à incompletude, porque ele busca cernir, ou ao menos delinear, o que seria o termo lógico de uma cura analítica.
À medida em que avança ao encontro de Freud, Lacan constata que, em análise, não se trata de ver-se livre de seu “sinthome”, mas de se identificar a este e aprender a “savoir et faire avec”, pois trata-se de um momento específico da estrutura. A via que ele toma é a da passagem do analisante a analista, sublinhando que toda e qualquer cura não produz necessariamente um analista, mesmo que se tenha atravessado o Rubicão, o que tornaria o analisante diferente de forma irreversível do que era antes. Isso nos remete ao famoso “movimento da estrutura”, que Freud descreve como um movimento progressivo da Urverdrängt que seria de outra ordem.
A partir dessas reflexões adotei uma via que me parece ser importante no sentido de ampliar ou, quem sabe, enodar estas considerações ao momento da invenção do objeto a por Lacan. Em princípio, é preciso circunscrever o objeto parcial como um objeto escondido e tão secreto que, diante de seu desvelamento, chega a provocar uma aphanisis irrecorrível do sujeito em análise. Este não é das Ding e se encontra afastado de das Ding, e é isto é o que faz dele alguma coisa que pode também ser nomeada “objeto do desejo”.
O primeiro aspecto deste objeto, este agalma, o que quer que seja e do que seja feito, é o de que é absolutamente único. Literalmente não tem semelhante; ele é incomparável. Cada significante é diferente de todos os outros; cada objeto seria também diferente de todos os outros. Mas não é isso do que se trata. Ele é incomparável no sentido de que não há sombra de um alter ego ou de um pequeno outro semelhante. Este objeto também não é o primeiro, nem maior, nem melhor. Este traço de incomparabilidade do objeto a é fundamental. A Mehrwert marxista é um elemento que não pode fazer parte de nenhuma contabilidade. O mais-de-gozar escapa da economia geral dos objetos de troca como a mais-valia marxiana escapa da ordem das trocas de mercadorias.
Com o objetivo de descrever este processo retoma-se uma referência ao das Ding do Esboço, em Freud, que dá relevo ao noumeno kantiano devido a um reconhecimento de que há no espírito qualquer coisa que não passa pelo sentido. Ao trazer o segundo aspecto do objeto a, cabe considerar a tipologia kantiana sobre o nada. Kant produziu quatro tipos de nada. E é somente a um deles que Lacan dá atenção, ao nihil negativum: o objeto de um conceito que contradiz a si mesmo não é nada. É deste nihil negativum que o objeto a toma uma de suas características que será mantida até o fim: ele não se rende a nenhum conceito. Este pequeno a não tem representação, ele não tem vorstellung. Há, pelo contrário, um representante e este representante não é mais do que um momento de aphanisis do sujeito, um momento em que o sujeito, ao querer se apreender, se introduzir na reflexividade para significar seu ser ou seu valor, se apaga como sujeito. Eis portanto o único signo clínico (e não há clínica que não seja signo) de emergência do pequeno a.
O terceiro aspecto do objeto a vai além de um certo número de obstáculos. Quando Freud inventou o conceito de pulsão organizado em torno de quatro termos – impulso, fonte, objetivo e objeto –, ele descreveu dois tipos primordiais: pulsão oral e pulsão anal. Lacan retomou este conceito e adicionou duas outras pulsões, escópica e vocal, dando um termo genérico que pudesse ser válido para todos os objetos pulsionais ao nomear o objeto a. O objeto é fundamentalmente qualquer coisa. O que se considera como parcial é cada uma das pulsões que já se encontravam presentes em três ensaios sobre a sexualidade. Por que tomar o objeto a como incomparável, como representante sem representação, como termo genérico de objeto qualquer da pulsão parcial?
Ao fim do Seminário A Transferência Lacan tratou novamente do estado do espelho acrescentando um detalhe que esteve ausente em todas suas menções anteriores. Há um momento em que a criança faz o gesto de se voltar para o adulto para que este “ratifique o valor desta imagem”. A partir desta consideração, o estado do espelho se torna mais do que nunca uma cena que reúne três parceiros e não um face a face: há a criança, a imagem e o adulto (estes três parceiros são chamados a receber nomes bem diferentes segundo as apresentações circunscritas). É nesse momento que Lacan introduz a “dialética especular” que se encontra nesta citação de 28/11/1962: “Este investimento da imagem especular é um tempo fundamental da relação imaginária, fundamental na medida em que há um limite, e que esse é: todo investimento libidinal não passa pela imagem especular. Há um resto.”
Este resto Lacan inicialmente diz que é o phallus, mas acrescenta em seguida, este phallus “é seccionado da imagem especular”. Em uma página mais adiante Lacan diz: “[…] a constituição do pequeno a que é este resto, este resíduo, este objeto cujo estatuto escapa do estatuto do objeto derivado da imagem especular, escapa às leis da estética transcendental, este objeto cujo estatuto é tão difícil de se articular, cuja entrada provoca todo tipo de confusão na teoria analítica […].”
É desse modo e a este preço que o objeto a como causa se introduz no ensino de Lacan, mas ainda com muita positividade. Face a tal coisa a ser localizada, coloca-se a questão: este resto, onde o alojar?
Mais adiante, em Mais ainda, em 1975, Lacan diz que este a inicial é muitas vezes ambígua, já que é duplo: às vezes significante da privação, às vezes pelo contrário, como ad, ele designa a direção e em francês designa a introdução, o que não é mais do que um a1 e outro a2. Até que, na conferência do congresso de Roma (a terceira), Lacan inscreve um grande número de seus próprios termos em um nó.
Lacan acentua com precisão que este objeto a não se aloja em nenhuma das consistências do nó. Não é nem imaginário, nem simbólico, nem real: é ectópico e esta propriedade faz dele o agente mesmo dos nós. O objeto a não tem nenhuma consistência. Não é imaginário face à definição estrita do imaginário. O fato de que este objeto se deve se separar do pequeno outro fará com que perca duas das propriedades do pequeno outro: a unidade “uniana” e a especularidade, propriedades articuladas uma à outra. Estas determinações negativas são suficientes para desfazer qualquer confusão entre os objetos “mundanos”, como seio e fezes e o objeto a. Lacan pode então dizer que o objeto não é real, que não é isto e que não é substituível, ele é o ab-jeto.
Para não encerrar sem retornar às reflexões de Patrick Vallas e tomando o objeto a como lugar do corte, como agente no nó borromeu, pode-se sugerir que o objeto a é corte que não se sutura e traz em si enquanto invenção a aposta de que se pode avançar em direção a um pequeno movimento da Urverdrängt como symptôme que venha a se fazer passe.
Apresentação em 22 de outubro de 2016, em Jornada da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle.
Ivanisa Teitelroit Martins