Em busca do tempo perdido em Proust é o tempo perdido.
A questão de em busca do tempo perdido é que o tempo perdido produz a busca.
No século XVIII é o escritor, pelo menos na França, que porta o destino da filosofia. O ensino era o movimento vivo das cartas enviadas e dos opúsculos que eram distribuídos. Rousseau se torna o grande filósofo e parte de sua palavra incide no discurso da filosofia.
Em tempos áureos de filosofia crítica e idealista, a filosofia mantém laços com a Universidade. A partir de Kant, Hegel se torna o professor em que a filosofia se realiza. Há um encontro da sabedoria com a Universidade e a necessidade de ser filósofo com título de professor, de dar à pesquisa filosófica a forma de uma exposição contínua, teve consequências. E no caso de Kierkegaard e Nietzsche?
Nietzsche foi professor e foi obrigado a desistir porque seu pensamento se realizava por fragmentos, por afirmações separadas, o que não se coadunava às necessidades da palavra universitária. Apesar disso, o filósofo não pôde mais evitar ser professor de filosofia. Kierkegaard escrevia tratados que formavam o campo Universitário. Em 1929, Heidegger formula a questão: “O que é a metafísica?” em uma aula inaugural na Universidade de Freiburg, enquanto se interroga e contesta a formação da comunidade de professores e estudantes que compõem as Faculdades. Heidegger era um escritor responsável por uma escrita comprometida, responsável politicamente, o que derivou advertida ou inadvertidamente em sustentação de práticas nazistas.
Este era o ambiente em que Hegel, Freud e Einstein, Marx e Lênin, Nietzsche e Sade eram nominados “professores”, “homens de laboratório”, “homens da práxis”, “escritores”.
O filósofo não é apenas aquele que ensina o que sabe, nem se deve atribuir a ele uma mestria no sentido de definir um vínculo existencial com o aluno/discípulo. O mestre é um campo no espaço e no tempo. Há, em decorrência de sua presença, uma dissimetria nas relações de comunicação, em que o campo das relações deixa de ser uniforme para apresentar uma distorção que exclui a reversibilidade das relações. O mestre não está destinado a transformar o campo das relações ao não facilitar os caminhos do saber, ao torná-los mais difíceis e até mesmo intransponíveis. O mestre não dá coisa alguma a conhecer que não permaneça determinada pelo “desconhecido” indeterminável, que não se afirma pelo mistério, a erudição, mas pela distância infinita entre A e B: uma relação de infinidade entre todas as coisas na palavra, pela palavra. A relação mestre-discípulo é a própria relação da palavra, quando o incomensurável se faz medida e a irrelação, relação. O desconhecido que está em jogo na procura não é objeto nem sujeito, mas a relação de palavra em que se articula o desconhecido.
É em Aristóteles que a linguagem da continuidade se torna a linguagem oficial da filosofia. A continuidade tem um desenvolvimento linear e uma coerência lógica reduzida a três princípios – o da identidade, o da não-contradição e o do terceiro excluído. O Corpus do saber que Aristóteles institui é apenas um conjunto mal unificado, uma soma disparatada de preleções reunidas, talvez porque somente dispomos das notas de cursos, de “cadernos” de alunos.
Seria necessário esperar pela dialética hegeliana para que a continuidade indo do centro à periferia, do abstrato ao concreto se tornasse um conjunto sincrônico que se apropriasse do parâmetro da duração e da história. Continua-se sob uma exigência circular que apenas se satisfaz da identidade pela repetição e ao princípio da razão que busca a ultrapassagem pela negação. A palavra da dialética não exclui, mas tenta incluir o momento da descontinuidade, vai de um termo ao seu oposto, do Ser ao Nada, mas cabe a interrogação: o que há entre os dois? O vazio do entre-dois, um intervalo que sempre se cava e cavando-se se preenche, em que se toma o nada como obra em movimento. A síntese virá preencher o vazio e ocupar o intervalo, mas não o faz desaparecer ao contrário, o mantém realizando-o, realiza-o na sua própria falta.
Somos seres de falta, por isso Lacan subverte a fórmula da filosofia. Ao invés do ser, ele fala, de modo contrário ao senso comum, que o humano, ou melhor, o falante, se constitui muito mais por ser falante como falta-a-ser, por ser falasser do que como ser. Nos dias de hoje o que não se quer saber é da falta. Esta é a grande questão da contemporaneidade, em que os discursos, qualquer um, mesmo o discurso analítico, se tornam objeto e obstáculo ao discurso analítico que funciona na remoção de obstáculos, interpostos por outros discursos, que fazem efeito sobre um sujeito que se constitui pela divisão, cujo objeto, seja pulsional ou amoroso, está desde sempre perdido.
A topologia permite levar em conta esse deslocamento, esta circulação para que alguma coisa que esteja abaixo passe acima, quando há uma inversão do direito para o avesso e há necessidade de cortar, de colocar uma questão para fazer aparecer outra coisa. E todos esses elementos parecem ligados, por se remeterem uns aos outros para formar uma estrutura. O que mais se pode fazer por esse sujeito senão lhe permitir ler seu sonho, aprender a ler ainda um pouco mais, aprender a se ler e a se deslocar, a não ficar no mesmo lugar?
A banda de Möbius é uma primeira topologia muito simples. O significante e o significado são as duas faces de uma folha de papel e a barra é a folha de papel. Quando se modifica um pouco o significante também há uma modificação do lado do significado. O significante e o significado parecem colados. O problema em questão é que não se consegue captar o significado. É preciso dobrar a superfície, torcer a barra, deslocar e fazer o percurso para chegar ao outro lado ou ao deslocamento metonímico.
Ao examinar o que se passa entre um significante e um outro significante pode-se encontrar um terceiro. Há sempre um terceiro significante entre dois significantes ao se abordar a continuidade da superfície. Nesse momento Lacan nos fala do corte. Ele corta a superfície que representa o conjunto de significantes de um modo sincrônico. É o dito que vai cortar esta superfície. Certos ditos que fazem volta sobre eles mesmos podem ter efeitos sobre esta superfície. Diz-se que foi o dito que provocou o fading do sujeito que é o próprio sujeito barrado que não tem nenhuma substância, nenhuma espessura, que é puro corte. Há transformações topológicas que Lacan trabalha do Seminário da Identificação ao texto O aturdito. Desde A Identificação Lacan mostra com cordões de barbante que ele traça sobre o toro ou sobre a esfera espaços conexos que não se comportam do mesmo modo. Há novas transformações topológicas, mas existe pelo menos um ponto que escapa a estas transformações.
No grafo do desejo Lacan descreve um circuito em que a topologia da cadeia significante é considera um trajeto, um caminho seja sobre o grafo ou seja sobre uma superfície que será cortada. É com os nós que há qualquer coisa de nova, de original, de inédita, o que faz o real dos nós. Assimila-se cada nó a um toro em que cada círculo é independente do outro, são separados dois a dois, fazendo três que foram nomeados por Dugowson (matemático que trabalhou a questão da conectividade) de espaço lacaniano que não é nem a conectividade das superfícies nem a dos grafos, mas uma conectividade particular, uma propriedade extraordinária.
A partir do nó borromeu reunido por esta conectividade tem-se um objeto topológico que permite circunscrever três registros: Simbólico, Imaginário e Real. Houve contribuição de matemáticos, entre eles, Jean-Michel Vappereau. Lacan desenhava estes nós em silêncio indicando por este ato que havia um campo a explorar por estar talvez insatisfeito com o que se tornou a psicanálise. Era preciso tentar situar o ponto de cunhagem dos nós e assim por diante, o que significou uma retomada integral de tudo o que Lacan havia construído. De uma certa maneira parecia um jogo de demolição de seus últimos seminários sobre os nós.
A cada vez que Lacan introduzia uma topologia, havia um efeito de sideração luminosa, porque é a topologia que permite revisar a estética transcendental. Cada vez que Lacan apresentava um objeto topológico havia este efeito de furar, de furar a evidência imaginária. Havia um efeito de esvaziamento da evidência imaginária.
Em O Aturdito Lacan diz o que é o corte e não diz o que é o dizer. O corte uma vez efetuado é o dito. O dizer se conclui com um corte que se fecha. Há cortes que são diferentes. Se o corte é o dizer então o dizer seria controlável. O que se atribui ao dizer é a mudança da estrutura. Em nossas asferas o corte é o dito. Lacan não especifica de que corte ou cortes se trata. Eventualmente o dizer se situa no movimento do corte ou na mudança de estrutura. O que interessa é o corte que muda a estrutura. O corte é ato analítico.
A repetição engendra o sujeito como efeito de corte ou como efeito do significante que está ligada à queda do objeto pequeno “a”. Se um ato se apresenta como corte, é na medida em que a incidência deste corte sobre a superfície topológica do sujeito modifica sua estrutura, ou pelo contrário, a deixa idêntica. Esse é o momento em que há um corte “cirúrgico” sobre a estrutura, que depende da experiência de quem exerce a função de analista. É nesse ponto em que há a ligação estrutural entre o ato e o registro da Verleugnung. No percurso de uma análise atravessa-se um labirinto de efeitos, em que o sujeito não se reconhece como sujeito, por ter sido transformado por seu próprio ato.
Sessão: “O que isso representa? Onde está o meu desejo aí no caso? A partir disso cada um faz uma interpretação. …parece que ela está lambendo ela mesma. E a partir daí o que dizer? Parecia às vezes que era eu que estava sentada aí. Tinha um desejo aí? Tinha vários: tinha o desejo de estar dirigindo a cena, um desejo de fazer do jeito que eu quiser, sem me submeter a ninguém, sem estar sob o olhar de ninguém. Tem uma experimentação ali, quase única.
É outro trabalho que não é o estudado nem o observado, algo que ficou guardado, que talvez o inconsciente traga, algo que ficou de fora. Não é algo que acontece toda hora, dificilmente, mas… é … está suspenso… acho que eu consigo perder o tempo para não perder o tempo, tem um desejo constante que não costuma parar… são palavras que a gente não vai mais dizer”.
Há ditos e ouvidos. Esta é a evidência. O dizer do inconsciente na medida em que não se reduz a tal ou qual representação, pouco importa a representação que o mascare, que o recalque ou não. O dizer definido por sua falta pode parecer esvaziado, mas não se deve tomar o desejo pela letra e o mostrar como evidência. A psicanálise coloca em evidência cortes de sentido e de não sentido. Já de um dito espirituoso retém-se provisoriamente um efeito de clareza e não de sideração. O desejo seria nesse sentido sair dessa sideração, dessa influência nefasta do Real, de Das Ding. Cortes em análise não produzem um outro sentido, mas um ab-sens, uma ausência. Cortes desinflam o toro para fazer uma banda de Möbius, desinflam o dito para fazer um jogo de desmontagem. Desse modo a evidência se esvazia se remete a um nada. E não é nada. Isso passa. E o que resta em ausência? É o desejo. E o discurso, ah, o discurso é o discurso analítico.
11 de maio de 2023,
Ivanisa Teitelroit Martins