O valor do inconsciente como signo

O valor do inconsciente como signo, ou marca indicativa, ultrapassou em muito a importância de seu significado como propriedade. À falta de um expressão melhor e menos ambígua, daremos o nome de “o inconsciente” ao sistema que se revela por meio de um signo indicativo da inconsciência de cada um dos processos psíquicos que o compõem. Uma sugestão de Lacan é passar a designá-lo pelas letras Ubw abreviatura da palavra alemã Unbewusst. Este é o terceiro e mais importante significado que o termo “inconsciente” adquiriu na psicanálise. Freud, S., Alguns Comentários sobre o Conceito de Inconsciente na Psicanálise – 1912

Em seu texto de 1955, “A coisa freudiana”, Lacan desenvolve a ideia de que a coisa freudiana é o que não se pode falar, mas que se pode fazer falar. Por isto Lacan enuncia seu famosos aforismo “Moi, la vérité, je parle”. Em outras palavras, se o “eu falo” equivale à verdade, a coisa freudiana não pode ser inteiramente substituida pelo sentido que possa ter o retorno a Freud sem que se trate de uma substituição, porque a verdade não se pode dizer toda. Lacan sublinha em “Televisão”: o dizer “todo” é impossível porque “as palavras faltam”: o real como impossível de dizer se articula à verdade, à palavra e à Coisa. A negativa (Verneinung) como símbolo da negação é uma via que permite a configuração de uma topologia de extimidade da Coisa (Das Ding) pela Bejahung e pela Austossung.

No momento do relatório de Roma, Lacan acentua o fato de que a identificação ao sintoma, dita sem mediação, não poderia proceder de uma extraterritorialidade à linguagem. Trata-se de interrogar a relação do sujeito com a linguagem para aí encontrar aquilo que, em certos casos, torna inoperante a mediação da relação imaginária produzida pela linguagem no ser falante.

Roma é o lugar onde se proclama o domínio, francamente adquirido sobre um poder. Em Roma estamos “no relatório”. Já em Viena houve um acontecimento. Ali Lacan se metamorfoseia em “freudiano” enunciando “a coisa freudiana” como sendo aquilo que só se poderia constituir no movimento de um retorno a Freud. Lacan se engaja na operação de um retorno a Freud a partir de um problema teórico que não cessará de trabalhar este retorno, que este retorno não cessará de trabalhar, que é o da articulação de Freud com S.I.R.. A Coisa será a última versão desse retorno, quando Lacan introduz uma outra definição do Eu na leitura de Freud. Uma das soluções possíveis ao alcance do retorno a Freud consiste em experimentar R.S.I., como aquilo que falta a Freud.

A transmissão da Coisa Freudiana

A recuperação da transmissão freudiana somente foi possível por conta de rupturas (Charcot, Breuer, Fliess), cisões e até mesmo dissoluções de Sociedades e de Escolas. A experiência da psicanálise tanto no campo do ensino quanto no campo da clínica não se reduziu a conflitos pessoais, pelo contrário, introduziu ou engendrou mudanças de discurso.

A princípio instaura-se uma questão sobre a prevalência entre sentido ou letra até mesmo dois modos de leitura, uma dentro do campo do sentido em que se aposta em uma renovação de sentido ou outra em que a leitura atua fora do sentido sem deixar de o modificar.

No sentido da letra como “estrutura essencialmente localizada do significante”, o significante do Nome-do-Pai é, pois, devido à sua localização, um significante como tal, escrito.

Em Lição IX do Seminário A Identificação de 24 de janeiro de 1962: “A relação da letra com a linguagem não é algo que se deva considerar numa linha evolutiva. Não se parte de uma origem espessa, sensível, para daí destacar uma forma abstrata. Não há nada que se pareça a nada que possa ser concebido como paralelo ao processo dito do conceito, mesmo somente da generalização. Tem-se uma série de alternâncias onde o significante volta a bater na água, se posso dizer, do fluxo, com as pás de seu moinho, e sua roda volta a subir cada vez que alguma coisa brilha, para tornar a cair, enriquecer-se, complicar-se, sem que jamais possamos em momento algum compreender o que domina do ponto de partida concreto ou do equívoco.”

  1. O ponto de partida é o signo, as pegadas e o caráter chinês, o choque da coluna de ar contra a língua e o palato na oclusiva gutural, que é tão figurativo quanto o traçado da marca do pé: operação da transcrição.
  2. O apagamento da pegada realizado pelo que se chama “vocalização” ou “fonematização” ou uma homofonia potencial. Esse tempo é aquele em que o traçado do passo é lido como “passo” e apagado como pictograma do passo, impressão de uma pegada.
  3. O traço que vem rodear o traço apagado confirma este apagamento. E ao tomar este traço apagado escreve-se o homófono do primeiro “pas”, que é na língua francesa o “pas” da negação. Logo, é no só-depois desse terceiro tempo que o apagamento, constitutivo do segundo, pode ser considerado como uma homofonia. Essa operação é a da transliteração do rébus da transferência onde o traço do “passo” (pas) vem escrever um “pas“ de negação/ apagamento do traço.
    Os vestígios da instância do Real em Freud

O sintoma se oferece no acesso à ordem simbólica através da transferência – a ser descoberto como produção do inconsciente, referido ao significante no seu enlace a um significado que terá que ser denunciado e negado para se produzir uma significação na relação analítica Através da transferência na construção da demanda em análise, abre-se uma possibilidade de desconstrução de significados e de novas significações, em uma permanente plasticidade que se contrapõe à compulsão à repetição.

O sintoma se encontra entre o desejo e o recalque e a constituição da teoria do recalque em Freud surge a partir da ruptura entre ele e Fliess sobre a bissexualidade. Enquanto Fliess encontra evidências anatômicas para adotar a bilateralidade como índice da diferença sexual, Freud penetra no campo dos pares opostos de significantes e do conflito psíquico como constitutivo do sujeito.

Por trás do debate em torno da bissexualidade entre Freud e Fliess, a teoria do recalque estava em vias de se constituir. O momento definitivo de ruptura com Fliess é provocado a partir de um sonho de Freud em que uma criança, ao invés de dizer até logo, diz auf Geseres auf ungeseres, um par significante. Freud associa esse par a outras oposições significantes e conclui que a criança opõe palavras para manter o equilíbrio, o que teria uma função própria no campo da economia psíquica e que a oposição entre significantes não é determinante para a etiologia da histeria.

Freud passa então a adotar a teoria do recalque. Se o feminino como tal é lacuna inominável, mutismo, resistência ao próprio discurso, esta lacuna somente pode ser demarcada por um viés, o do recalque, que vai produzir uma representação, um traço, lá onde literalmente não há nada, nem representação, nem traço. Ao fazer isso, o recalque propõe à análise um material, uma alguma coisa mais que coisa alguma.

O real está lá “só depois”, na medida em que, em nível de inconsciente, a repetição significante produz literalmente o real em sua função de causa. O efeito do recalque, passando pela repetição e pelo retorno do recalcado, consiste em sexualizar aquilo que primitivamente não estava sexualizado pelo sujeito. O recalque, em suma, tem por função fazer do real uma realidade sexual. Se há sexualização, há, por esse fato mesmo, determinação de um não-sexualizado. Tal é o segredo do mecanismo de repulsa na histeria. O inconsciente opera com o real, não apenas trata o real, mas o produz, o determina no interior do processo de recalque. Esse real não é simplesmente exterior à repetição significante, mas está capturado por ela, mesmo que não esteja aí representado enquanto tal, ele está presente e se traduz por efeitos de angústia.

O sujeito é capturado por uma experiência real sem significantes que permitam responder para constituir uma transformação de uma cena passiva em uma cena em que ele participe ativamente. Sem o significante que lhe abre a possibilidade de ação, o sujeito permanece confrontado com uma lacuna que aponta para o recalque. O recalque por constituição primária causaria o significante, o par de significantes (S1-S2) que viriam contornar a experiência do real nomeada por Freud de Vorstellungrepräsentanz (representante-representativo). Nesse limiar o significante cumpre sua função de corte, de delimitação de um bordo entre o real e o simbólico.

Freud ao longo dos anos abandona a noção do real, do não-reconhecível, do mutismo e da morte pela noção de castração. A teoria da castração passa então a recobrir a primeira formalização. Para Serge André, em O que quer uma mulher (1996/1998), o real vai sendo recoberto pelo simbólico até desaparecer. Já o ensino de Lacan faz emergir a instância do real pelo sistema simbólico. Freud parte do real para chegar à castração e faz da castração uma tela para o real. Em Lacan, pelo contrário, o deciframento parte da castração simbólica e atinge um ponto de real, e o sistema simbólico deixa de ser um recobrimento para atravessar os furos através dos quais se manifesta a hiância do real. Ao fazer um movimento retroativo aos textos de Freud encontramos os vestígios de uma instância do real.

É pela via do recalque que se opera a sexualização do corpo, determinando retroativamente o lugar do trauma, o furo pelo qual se presentifica um real dessexualizado, o processo de recalque institui uma fronteira, um limiar. E o seu fracasso deixa aberta uma hiância por onde se manifesta o trauma ou o troumatisme. Na medida em que nem tudo se torna representação, nem tudo é absorvido pelo significante, resta um real não simbolizado em torno do qual vem se construir um sintoma. O discurso da histérica consegue atingir uma vorstellungrepräsentanz que aponta para um mais-além fora do significante.

em 20 de julho de 2023,
Ivanisa Teitelroit Martins