Topologia é praxis

Nada é, senão na medida em que se diz que isso é

A linguagem é o que Lacan chama de “alíngua”. “Alíngua”, escrita em uma só palavra designa, a cada um de nós, a relação com a língua dita materna.
A linguagem é o que se tenta saber com relação à função de “alíngua”. O inconsciente é um saber, um saber-fazer com “alíngua” em Mais ainda. “Alíngua” nos afeta, de início, por tudo que ela comporta de efeitos, que são afetos. Esses efeitos de “alíngua, que já estão ali como saber, vão muito além de tudo o que o ser, o ser que fala é suscetível de articular como tal.
O inconsciente, ao ser sustentado como um deciframento somente pode se estruturar como uma linguagem, uma linguagem sempre hipotética, em relação ao que o sustenta, ou seja, “alíngua”.
O nó, agenciador de uma sucessão de círculos é uma escritura em que o imaginário não está ausente. A proposta de Lacan sobre uma nova queda consiste na cunhagem do nó, em que é traçada uma demarcação entre o registro do imaginário necessário ao manejo, o registro do imaginário que se inclina à imaginação e os outros registros. O nó não é metafórico, não é um modelo. É consistência de corda e de corte e não é demonstrável, porque não é representação, mas real, que procede da mostração do sensível. Já a demonstração do Sinthome é topológica. É o inexprimível que se mostra. Lacan se orienta no manejo dos nós na direção da mostração. No seminário XXII, RSI, Lacan afirma que a mostração do nó é uma demonstração de um fazer, o fazer do discurso analítico.
A verdade fala uma vez que ela é a verdade. A verdade não necessita dizer a verdade. Somente se entende a verdade e o que ela diz apenas para quem sabe articular o que ela diz. O que ela diz onde? No sintoma, isto é, em algo que tropeça. Tal é a relação do inconsciente, na condição de fala, com a verdade.
Leiam as páginas de Finnegans Wake, sem procurar compreender. Isso se lê porque sentimos presente o gozo daquele que o escreveu. Por que esse Work ficou 17 anos in progress?
É o sintoma que interessa. O sintoma em Joyce é um sintoma na medida em que não há chance de se enganchar em algo do inconsciente de quem o lê. Ainda não se havia feito literatura como a de Joyce. Joyce desejava ser um nome que sobrevivesse.
Ao ler Joyce o leitor fica fascinado com o que esse nome ecoa o de Freud que tem uma relação com joy, o gozo (jouissance), tal como ele é escrito em “alíngua” que é a inglesa. – por ser essa gozação, por ser esse gozo a única coisa que, do seu resto, podemos extrair. Eis o sintoma.
O sintoma é puramente o que “alíngua” condiciona, mas de certa maneira Joyce o eleva à potência da linguagem, sem torna-lo analisável, no sentido em que se diz je reste interdit.
A literatura não pode mais, depois de Joyce, ser o que era antes.
Na medida em que o inconsciente se enoda ao sinthoma, que é o que há de mais singular em cada indivíduo, pode-se dizer que Joyce é aquele que privilegia ter chegado ao ponto extremo de encarnar em si o sintoma, através do qual ele escapa a toda morte possível, deixa de se reduzir a uma estrutura que é a mesma do uom que pode ser simplesmente como um u.o.m.
Depois do sinthoma, uma equivocação, o unbewustt em l’insu que sabe de une-bévue (uma equvocação) s’aille à mourre (faz jogo), permitindo a “alíngua” a maior equivocidade possível. Lacan é preciso ao dizer que tenta introduzir alguma coisa que vá mais longe do que o inconsciente, para além do inconsciente. De fato, o inconsciente não tem nada a ver com a inconsciência e acrescenta que um sonho, um ato falho, um chiste são equívocos, são bévues.
Coube a Freud sustentar que um saber já está lá, um saber que não se sabe, um saber suposto através de deduções. Insu ou o inconsciente é um saber que tem um estatuto particular. “O inconsciente é uma hipótese necessária e legítima”. Faz-se ao sujeito um convite a reencontrar sua divisão entre saber e verdade e construir por extensão o que venha a se extrair: Wo es war, sol ich werden.
Freud anotou que há uma sensibilidade particular e inexplicável na raiz de um sintoma e Lacan salienta o papel da sensibilidade do corpo ao que ele ouve. Trata-se da formação do sintoma a partir do eco de um dizer. Estes dizeres não fazem traço, mas buraco (trou), troumatisme, são dizeres que se cravam no corpo. É “alíngua” falada e ouvida que faz traumatismo. O laço de “alíngua” com a linguagem se faz por homofonia. Esse enodamento do corpo e de “alíngua” é cernido ao final de uma análise.
“Alíngua” é o som da letra. A letra, por sua vez é o que faz traçado, faz borda no furo do saber. É o instrumento apropriado à escritura. É a razão do inconsciente. É o que, do significante que vem do Outro, carreado pela voz, pelo objeto voz, se marca como uma marca apagada, enigmática, à espera de uma decifração.
“Onde estamos? Não sabemos e sabemos de um saber exato que nós não sabemos. Estamos nesse não-saber que habitamos cada um a seu modo, mobiliando com o nosso corpo, nossas maneiras de ser e nossos idiomas. O Espaço é o nome deste não saber.”
O espaço desdobrado é o sujeito do não-saber em Freud e o espaço topológico é o inconsciente. A banda de Möbius tem um direito e um avesso que permite apresentar o modo de relação do consciente ao inconsciente, uma dupla inscrição. O ato e interpretação permite fazer corte mediano que pode ou não ter efeitos sobre a cadeia significante. O sujeito é o corte, oito interior com um recorte figurado na divisão do sujeito. Lacan reuniu as diferentes invariantes da banda de Möbius”: o círculo duplo, a borda, o corte, a modalidade como os traços unários que podem ser lidos como tantas outras homofonias – o significante, o sujeito, a repetição, o inconsciente.
Lacan coloca no nível de pequenos círculos sucessivos “a série de voltas que se faz na repetição unária e o que retorna caracteriza o sujeito primário em sua relação significante ao automatismo da repetição. Estas voltas vão constituir a escansão da demanda repetitiva em torno do círculo vazio que para Lacan representa o círculo do desejo. Este círculo central é para Lacan a especificidade topológica do toro.
Em 1972, em o Aturdito faz-se um certo corte no toro que permitiu cernir o möbiano diretamente no tórico sem a intermediação do cross-cap. O inconsciente é o möbiano no tórico. O möbiano é o estado de fantasma no furo tórico. O toro ligado ao oito interior mesmo não sendo consciente permite descobrir os erros lógicos da neurose em que o recalque do erro lógico é um dos aspectos do recalque que opera na neurose para que não seja possível alcançar seu möbiano. Como a psicanálise pode fazer surgir topologicamente o möbiano?
O discurso da análise matemática é idêntico ao discurso da análise freudiana. Do número infinito de demandas, que restam não contabilizáveis, passa-se ao desejo, ao impossível de contabilizar. O corte elucida a topologia asférica. Esta passagem da demanda ao desejo já estava presente na teoria lacaniana de 1960 que é a passagem do esquema R ao grafo do desejo explicitada pela passagem do contabilizável ao transfinito ou pela passagem da esfera à asfera da topologia. Não se trata de passar de um discurso a um outro de passar da esfera à asfera, mas de demonstrar a asfericidade que consiste em que a asfericidade esteja sempre presente. Nesse sentido o discurso psicanalítico esférico está presente em cada um dos outros discursos.
A prática analítica que é a topologia deve dar conta dos cortes de discurso que modificam a estrutura, uma vez que o discurso aloja a estrutura. Os cortes são operações que podem produzir uma subversão topológica.
Em O momento de concluir o inconsciente é definido como a face do real no qual se está enredado. O final de análise se dá quando um dizer deu duas vezes a volta em torno daquilo de que se é prisioneiro.
O inconsciente e o sinthome são os rastros de um enredo na linguagem, em que o sujeito se encontra enredado. A análise não consiste em se liberar, mas em saber por que se está enredado. Se o sujeito está enredado é porque a linguagem não é uma boa ferramenta. Não há correspondência biunívoca entre as palavras e as coisas, entre a linguagem e o real. O real aparece somente por um artifício ligado ao fato de que existe a palavra.
Em O momento de concluir Lacan sai da prisão do lacanismo em seu enunciado “eu não sou lacaniano” que será escutado três anos mais tarde. Lacan não é lacaniano. E ele disse, o que também é verdade: “eu sou freudiano”.
Em A topologia e o tempo Lacan propõe analisar a correspondência entre a topologia e a prática. Esta correspondência consiste nos tempos que confirma a leitura seguinte: “a cada tempo da prática corresponderia um tempo da topologia.” Depois do instante de ver, viria o tempo de compreender, em seguida o momento de concluir, três tempos dos quais somente o terceiro é objetivável enquanto duração.
Em uma terceira fase de sua transmissão Lacan precisa: “a topologia resiste, é nisto que a correspondência existe”. A topologia resiste porque participa do real, esta correspondência entre prática analítica e topologia existe, ela mesma é real. A resistência na cura deriva afinal de contas de fatos topológicos.
A “descoberta” de Lacan da existência do nó borromeano generalizado abre a via para a relativização do falo e, portanto, da castração, na medida em que a suposição do nó que tem um sujeito pode ser apresentada de vários modos mais complexos além do quarto elo como sintoma, o que permitiria, quem sabe, dar conta de novas formas clínicas.

em 18 de setembro de 2024,
Ivanisa Teitelroit Martins